quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Ocean Spray - Manic Street Preachers (Know Your Enemy)

Não questionei o velho João – porque não devemos nunca pôr em questão quem já viveu mais experiências que nós – quando disse que "antes morrer que morrer no verão". Até achei poético, sinceramente.
Eu já o conhecia, desde pequeno. Quando chegava da escola ia visitá-lo, perguntar-lhe se precisava de alguma coisa e ele, na sua poltrona, agradecia e mandava-me tomar, como meus, os 100 escudos que todos os dias me dava. Nunca lhe perguntei se tinha tido mulher, ou um grande amor. Ele sempre disse que a sua vida eram os livros e que com eles fazia amor, sorria, desesperava e a eles tinha jurado amor eterno.
Contou-me, um dia, que tinha vestido a pele de imperador em Macau, destronando (com palavras, o velho João não era de guerras) o seu irmão mais velho. “Dei, depois, o lugar aos pobres” disse-mo ele. Ouvi alguém chamar-lhe vermelho, dias depois. Revelou-me, um dia, que se a nossa alma fosse boa e livre de pecados, seríamos depois mais leves e livres de nos deslocarmos. E quando a chuva cai por aqui, o velho João vem ter comigo, na sua longa gabardina castanha, para cheirar a terra e as flores.
Com o passar do tempo, os pulmões foram-no atraiçoando. O velho João disse-me que conseguia respirar na perfeição, mas que já não se lembrava de como o fazer. E quando o coração também quis parar, o velho João agarrou o peito – como se estivesse a agarrar a vida – e contam os meus pais que ele ainda falou com a morte. Que a repreendeu por se ter adiantado à sua vontade mas que também a congratulou, por ter coragem de lutar contra uma alma tão pura.
No Outono da sua morte, não chorei o velho João – porque não devemos nunca chorar uma vida cheia de experiências – quando a terra húmida o engoliu e misturou os dois perfumes sagrados. Até achei poético, sinceramente.

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